O Mundo do Socialismo é obra pouco comentada e debatida do autor de Formação do Brasil Contemporâneo (1943) e História Econômica do Brasil (1945). O Ensaio foi lançado em 1962 e corresponde a uma síntese da experiência de Caio Prado Júnior em viagem de dois anos pela URSS e China Popular. Uma razão para o ostracismo do livro pode ser o seu relativo perecimento frente aos acontecimentos que, a partir do final dos anos 60, foram sinalizando de maneira mais evidente contradições do mundo do socialismo: o autoritarismo político viabilizado pela não ocorrência plena da socialização produtiva; o processo de burocratização; a restauração gradual do capitalismo de mercado - Glasnost e Perestroika (1985) e colapso formal da URRS (1991).
Identificamos em algumas passagens certa previsão de futuro (implícita em todo livro) que não se concretizou: a generalização do socialismo em nível mundial. Assim, os países do mundo socialista vão sendo apresentados como parte de uma marcha histórica inevitável pós-capitalista.
Um leitor apressado poderia desde já ir descartando as teses de Caio Prado ao não levar em consideração o universo de escolhas e informações daquele escritor naquele momento da história. E mais: as previsões partem da convicção de um intelectual e ativista marxista num contexto de batalha de ideias (Guerra Fria) e dentro de um momento em que ainda há, o âmbito de expressiva parcela do movimento socialista internacional, a percepção de que o que se passava na URSS sinalizava de fato um futuro pós-capitalista, a construção de um novo mundo, sob novas bases econômicas, políticas e culturais.
Pois é dentro deste quadro de enfrentamento e disputa de ideias que a obra pode ser interpretada e resgatada para atualidade. O Mundo do Socialismo é diferente de um memorial de viagens. A intenção do autor - já sinalizada logo no início do prefácio - é descrever de forma panorâmica como os países do mundo socialista vão encontrando soluções concretas para os problemas da liberdade, da igualdade social, da democracia e da marcha ao comunismo. Para isto, Caio Prado Jr. vai se servindo daquilo que vê para, de maneira comparativa, estabelecer em que aspectos o socialismo vai encaminhando uma nova sociedade em contraponto ao capitalismo.
A tônica anticapitalista do ensaio tem bastante atualidade: o significado do direito, estado e liberdade no âmbito do capitalismo são desconstruídos, assim como as teses (também atuais) que procuram isolar a alternativa socialista: sua "ineficácia prática", seu lado supostamente contrário à "natureza humana", seu aspecto "autoritário", etc. No que se refere às experiências do socialismo, a sua defesa teórica perpassa a obra e vai além da experiência soviética: o objetivo não é o do julgamento histórica daquela experiência, mas de uma proposta de interpretação do mundo do socialismo, sem qualquer ilusão de neutralidade e levando em consideração prática políticas testemunhadas pelo autor.
Liberdade e Igualdade
A liberdade e igualdade no capitalismo surgem como uma peça de ficção e, através da confrontação da liberdade e igualdade praticadas no mundo do socialismo, Caio Prado Jr. vai dialogando e debatendo com os argumentos anti-soviéticos. No capitalismo, a liberdade é formal e se conforma no sentido de viabilizar a livre negociação de compra e venda da força de trabalho. A liberdade é individual e se encerra na liberdade alheia: ocorre que, numa sociedade desigual e dividida entre patrões e trabalhadores, a liberdade de cada um vai variar de acordo com a situação do indivíduo frente aos meios de produção. De modo análogo, a igualdade também é, no capitalismo, apenas formal, incide sobre uma personalidade abstrata e não vinculada às condições concretas da vida.
As saídas para o problema da liberdade e da igualdade no mundo do socialismo partem da diferenciação teórica dos dois modos de produção: a propriedade dos meios de produção. A socialização implica em um novo tipo de liberdade, em que os indivíduos deixam de se confrontar uns aos outros, para (a liberdade) se afirmar pela vontade geral: é condição para a plena liberdade a ocorrência da igualdade e o interesse coletivo vai sendo confundido com os interesses individuais conforme se processam a socialização da economia e da política, mudança de valores e culturas, etc. Finalmente, o trabalho assume um papel central na consolidação da nova sociedade igualitária: perde seu aspecto de mercadoria e assume um caráter ético, é destinado a interesses da coletividade da qual cada indivíduo participa e aufere todas vantagens da vida.
Evidentemente, Caio Prado Jr. não funda teorias da liberdade e igualdade no livro. O resgate destes temas pelo autor, de maneira didática, pareceu-nos ser um dos pontos altos do livro. A reconstrução de utopias e novos tipos de sociedade parte deste confronto de idéias, que não só vai desideologizando as premissas do capitalismo, como sinalizando, ainda que parcialmente e de forma limitada às condições históricas, a forma como se daria o socialismo e a utopia comunista. Trata-se de uma tarefa central na luta contra-hegemônica atual: a reconstrução do sonho de sociedades pós-capitalistas que superem tudo o que aparenta ser "naturalizado" e sem história.
Contrapartida
Evidentemente, uma análise mais detalhada de um Mundo do Socialismo não pode furtar-se a uma crítica radical do stalinismo e do ocultamento pelo autor (não sabemos se consciente ou não e em que medida) de contradições referentes às perseguições políticas dentro do campo socialista, ao personalismo político, ao problema da heterogestão dos meios de produção, ao fortalecimento e centralização do aparato estatal em detrimento do poder local (tese não reconhecida pelo autor, que, pelo contrário, vê sinais do definhamento estatal), etc. Esta dupla dimensão - da utopia socialista em sentido mais geral e da história da revolução russa, com todas as contradições que escapam ao juízo de Caio Prado Jr. - é inevitável quando se lê textos de personagens engajados na história. Procuramos aqui apenas propor a leitura da obra chamando atenção para aquilo que ela tem de atual e sinalizando um justo acerto de contas não só com o Mundo Do Socialismo mas com todo o pensamento caio pradiano.
Sínteses
Caio Prado Jr. escreve seu livro na condição de um viajante que procura enfrentar a mistificação promovida pela direita em torno do mundo do. Talvez, o fato do olhar partir de um viajante, alguém exterior àquele processo, possa ter contribuído para o que se pode chamar de "erros da análise", "excesso de otimismo", "ingenuidade", etc. Ainda, a firmeza com que defende a experiência daquele processo e a forma como procura debater direta e francamente com os adversários do socialismo - a narrativa remete mesmo a uma peça de argumentação de um advogado de defesa do socialismo - faz do Mundo do Socialismo ainda uma boa ferramenta de luta. Por um lado por sua atual denúncia do capitalismo. Por outro como boa descrição e análise das linhas gerais do socialismo e do resgate de utopias. Já viria em boa hora uma nova edição desta obra e a sua redescoberta militante.
Uma passagem final
"Não se justifica assim qualquer atitude de prevenção e hostilidade de princípio contra o mundo do socialismo, de cuja rica experiência histórica nos devemos necessariamente valer. Não para servilmente a copiar, e sim para aproveitá-la convenientemente. Tanto mais que entre as grandes lições dessa experiência estão aquelas que nos permitirão evitar os escolhos em que esbarraram, como tinham de esbarrar, os pioneiros e a vanguarda do socialismo, obrigados como foram a desbravar um terreno ainda indevassado e virgem. (...) É nesse sentido que orientei minha viagem pelo mundo do socialismo. Penso que se todos aqueles que julgam necessária a transformação do mundo em que vivemos, e a instauração de novas formas de vida social e de convivência humana libertas das mazelas do capitalismo, adotasse o critério de procurar no mundo do socialismo uma fonte de experiências a fim de as adaptar convenientemente aos lugares onde vivem e atuam, as questões hoje pendentes e que tão gravemente afetam a vida de quase toda a humanidade incluída no mundo capitalista, encontrariam soluções muito mais fáceis, seguras e rápidas" [Caio Prado Jr. - O Mundo do Socialismo]
Paulo Marçaioli é estudante e militante do PSOL-Valinhos
Um comentário:
Não tenho um conhecimento profundo acerca do mundo socialista....
, mas creio que palavras como : liberde.condiçôes igualitaria é tudo utopia, na realidade , ainda que aconteça muitos debates , conferêncas ,lutas , isso é impossivel de acontecer , a hierarquia é algo natural do ser humano, não temos como quebrar valores milenar , mesmo porque essa linha de pensamento e prática sempre sera interrompida por muitos,pois não há interesse nem espaço para um " mundo " políticamente saudável.
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